A Vanda

A voz da mulher indígena que ecoa no mundo

Vanda Witoto tem o nome indígena de “Derequine”. A denominação significa “formiga brava”. Uma referência ao clã de saúvas e ao inseto que é sinônimo de cooperação, trabalho árduo e vida em comunidade. Definição que se aplica tão bem à mulher indígena que aos 37 anos já é uma líder para o seu povo e tantos outros amazonenses.

Filha de Edson Witoto e Leia Kokama, nasceu em 1987, na Aldeia Colônia, no Alto Rio Solimões, município de Amaturá, a 909 quilômetros de distância de Manaus. Ao contar sua história, Vanda gosta de frisar que descende de mulheres fortes, de quem tem orgulho e herda a força ancestral. Sua avó paterna, por exemplo, chegou ao Brasil fugindo do genocídio que o povo Witoto sofria na Colômbia e refez sua vida do zero.

Vanda viveu na Aldeia Colônia com sua família por 10 anos. De lá traz boas lembranças e ensinamentos. Ela sorri ao falar do quanto aprendeu a ser independente com seu povo. “Com seis anos as crianças já plantam e pescam”, relembra. Era feliz com sua comunidade, mas seu pai, consciente da importância da educação e preocupado em oferecê-la a seus filhos, reuniu a família e foi para a cidade mais próxima a fim de garanti-la para suas crianças.

Estou pronta pra continuar escrevendo essa história

Amor pela educação

Viveu no município de Amaturá por cerca de 6 anos e ao chegar a Manaus, em 2002, Vanda percorreu o caminho de muitas meninas indígenas: foi trabalhar como empregada doméstica em troca de moradia e algum dinheiro para ajudar a família que havia ficado no interior. Passou por muitas casas, sofreu preconceito e várias formas de violências. Resistiu a cada uma delas e só aceitava trabalhar em locais onde não era proibida de estudar. “Acordava de madrugada para adiantar todo o serviço e não ser proibida de ir para a escola”, conta.

Formação

O esforço valeu a pena. Vanda concluiu o curso de Pedagogia pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), além de já ser técnica de enfermagem formada.

É um orgulho para o pai que, apesar de ser um incentivador da educação, nunca tinha imaginado a filha na academia. “Meu pai dizia que eu tinha que terminar o ensino médio para conseguir arrumar um emprego melhor”. Por falta de conhecimento, Edson Witoto não imaginava uma vida universitária para a filha, mas foram os seus incentivos que a levaram tão longe.

Primeiro emprego

No ensino médio, uma professora de inglês percebeu o potencial de Vanda e quis vê-la indo mais longe na vida profissional. Fez um currículo para a menina indígena que amava ler e conseguiu um emprego para ela em uma confeitaria da cidade.

As habilidades de Vanda também foram percebidas pelo marido da professora que era  gerente da confeitaria.

Com dois meses trabalhando no local, os donos começaram a pagar cursos de gestão e liderança para ela. Três meses depois, Vanda foi convidada a ocupar uma vaga de supervisora. Esse foi seu primeiro desafio de liderança. Dois anos depois, tornou-se gerente de uma filial recém-aberta. “Foi lá que eu consegui me desenvolver. Eles enxergaram meu potencial e se dedicaram à minha formação profissional”, explica.

Durante sua passagem por esta empresa, Vanda iniciou, paralelamente, o curso de técnica de enfermagem, um antigo sonho. Os patrões a ajudaram, custeando parte do curso. A nova profissão abriu horizontes para Vanda que começou a se imaginar na universidade. Ela queria estudar algo na área da saúde, mas os cursos eram em tempo integral e ela não teria como se manter financeiramente. “A pedagogia era minha segunda opção e na universidade eu fui entender ainda mais a importância da educação”, relembra a líder Witoto.

Universidade

Na UEA, ela se inscreveu por cota indígena e foi aprovada em primeiro lugar, mas para se matricular, precisava do seu Registro de Nascimento Indígena (Rani), documento que não conhecia e que despertou nela uma série de perguntas sobre sua origem.

“No documento tinha meu nome indígena “Derequine” e dizia que sou uma Witoto. Sabendo disso, fui perguntar ao meu pai o motivo de não falarmos a língua e porque nossa história e cultura tinha sido negada”, explica. Nesta conversa, começou a entender a violência vivenciada pelo seu povo e a necessidade de lutar contra isso. Hoje, trabalha com as crianças da comunidade a importância  de manter sua cultura cada vez mais viva.

Nasceu aí o lado ativista e líder de Vanda Witoto.

Universidade, Identidade e Luta

Vanda relata que entrou na Universidade sem saber ao certo o que era aquele espaço. “A gente não se reconhece como parte daquele lugar”, relata.

Ela conta que no início das aulas se apresentou com o seu nome “de branco”, Vanderlecia Ortega, mas duas semanas depois, quando um colega de turma chegou com o corpo pintado, se apresentou como Francisco Maricaua e saudou os colegas em sua língua materna, despertou nela a importância de ocupar aquele espaço, identificando-se como indígena. “Eu pedi para me reapresentar e o fiz como Vanda Witoto. Quando eu ouvi ele falar, não me senti mais sozinha e a minha identidade começou a ser fortalecida”, conta.

A partir desse encontro com Francisco Maricaua, começou um trabalho de fortalecer as identidades indígenas que estavam apagadas naquele meio. “A universidade acolhe, mas apaga os saberes, as histórias e memórias dos nossos povos. Temos que nos afastar de tudo que sabemos enquanto indígenas para atender uma etimologia ocidental”, avalia.

A busca pela identidade uniu os colegas em um movimento para demarcar a universidade como um território indígena.

Eles mapearam os estudantes e deram início a ações de afirmações étnicas. O trabalho realizado pelos estudantes levou a retomarem, em 2017, o Movimento dos Estudantes Indígenas do Estado do Amazonas (MEIAN), onde Vanda foi secretária e atuou como coordenadora.

Desde então, ajudou a conquistar a criação da Comissão de Políticas Afirmativas da UEA. Através das reivindicações dos estudantes e apoio de alguns professores, foi possível criar os projetos Diálogos Interculturais e o Tecendo Redes, que acolhem estudantes indígenas com bolsa de apoio acadêmico, ações que ajudaram a diminuir a evasão escolar dos indígenas que entravam na Acadêmia, mas não conseguiam se manter financeiramente.

Outro projeto  criado neste intuito foi o L2, que oferece formação em português para indígenas, pois muitos não conseguiam caminhar no meio acadêmico por só serem fluentes na língua materna. “Hoje os estudantes saem da UEA formados e a gente não se sente mais só”, comemora.

Símbolo na Luta Contra a COVID-19

Durante a pandemia de Coronavírus, o descaso dos governos com os povos indígenas ficou ainda mais exposto e Vanda assumiu um protagonismo durante a crise sanitária.

Diante do genocídio que ameaçava os indígenas que não tinham acesso à saúde e aos paramentos básicos para se proteger contra o vírus, a técnica de enfermagem se uniu a outras lideranças do Parque das Tribos, onde mora, mobilizou a população local e provocou o poder público para salvar muitas vidas em sua comunidade.

Junto com várias lideranças, Vanda montou uma unidade de apoio à saúde em enfrentamento à COVID e à crise do oxigênio com doações. Em uma quadra do bairro que, negligenciado pelo governo, não oferece nem água encanada, redes viraram leitos para infectados. No local, tudo era fruto de doação, desde os cilindros de oxigênio aos medicamentos e kits de proteção individual.

Na falta de equipamentos de proteção, junto com a sua mãe e outras mulheres, comprou tecido, cortou e costurou máscaras que foram doadas à comunidade. E fez do próprio carro ambulância para levar as pessoas da comunidade que apresentavam sintomas da doença.

Na capital do Amazonas, Vanda foi uma das reivindicadoras de uma atenção diferenciada aos indígenas.

Suas reclamações resultaram na abertura de uma ala exclusiva para pacientes indígenas no Hospital de Combate à Covid-19. Vanda e outras mulheres da sua comunidade conseguiram que o espaço fosse adaptado com redes para acomodar  indígenas atendidos no local. Uma forma de oferecer mais conforto aos doentes, ambientando o espaço de acordo com a sua cultura.

Em reconhecimento por seu trabalho, Vanda foi a primeira pessoa a ser vacinada no Amazonas, como profissional de saúde e mulher indígena. O momento ficou eternizado em sua memória e nas várias páginas dos jornais que divulgaram Vanda vestida com sua roupa tradicional Witoto, recebendo a primeira dose da vacina CoronaVac, no dia 18 de janeiro de 2021.

A vacinação lhe rendeu duas grandes emoções: a da esperança da interrupção da pandemia que matou pessoas em todo o mundo e a alegria por ser acionada pela pesquisadora Verônica Manaura, brasileira que mora na Colômbia e conhecia o povo Witoto de lá. “Ela não sabia que existia Witoto no Brasil”, explica Vanda.

Verônica promoveu o encontro de Vanda com seus parentes via chamada de vídeo. “Foi muito emocionante, eram muitas histórias para contar”, relembra ela. A vontade de saber mais sobre a história do seu povo, cruzou fronteiras. Logo depois, Vanda foi com a sua família para Colômbia conhecê-los. Um momento de grande emoção onde as “abuelas” – avós em espanhol – de Vanda puderam compartilhar histórias e conhecimentos tradicionais e reconhecer nela a “ponta de lança” que abrirá caminhos para todo o seu povo.

Esperança para um povo

A trajetória que trilhou até aqui deu a Vanda Witoto a posição de líder da sua comunidade que reconhece a sua luta para tirar seu povo da invisibilidade, conquistar melhores condições de educação, segurança e saúde, além de trabalhar a cultura e o orgulho nos jovens do seu território. “Sei que depositam muitas esperanças em mim”, analisa.

Nesse sentido, Vanda somou forças com outras lideranças para desenvolver e apoiar projetos como o que alfabetiza as crianças da comunidade do Parque das Tribos e difunde saberes indígenas para o fortalecimento cultural. O movimento que começou por iniciativa da professora e liderança Claudia Baré, em um ambiente improvisado e com doações, hoje atende as crianças em local próprio, o Espaço Cultural Indígena Uka Umbuesara Wakenai Anumarehi.

Vanda também desenvolve o “Ruaringo – Mulheres que Dançam” criado para valorizar os conhecimentos tradicionais, a ancestralidades e a cultura. O movimento é uma fonte de renda para as moradoras da região que vendem roupas, biojoias e artesanatos indígenas, além de ser um espaço de apoio para essas mulheres.

Com mulheres, também desenvolve o projeto “Cozinha solidária”: com doações, preparam 400 refeições distribuídas na tentativa de diminuir a insegurança alimentar da comunidade.

As ações fortalecem a comunidade para se unir à lider Witoto em outra luta, contra o preconceito que as 700 famílias do Parque das Tribos sofrem por morarem em contexto urbano. O espaço fica na periferia de Manaus e é abandonado pelo poder público em muitos sentidos. Falta infraestrutura, segurança, saneamento básico. Mas, ainda assim, aos povos das 35 etnias que ocupam a região é negada sua identidade indígena. “Dizem que só pode ser índio se morar no mato e viver nu”, diz ela com indignação.

Vanda sabe que a violação de direitos não acontece apenas no Parque das Tribos e quer fazer mais pelos povos indígenas de toda a região e do país. Assim, em janeiro de 2022, Vanda Witoto se juntou à Rede Sustentabilidade e decidiu lançar sua pré-candidatura a deputada federal pelo estado do Amazonas. “Precisamos ocupar esses espaços de poder para que as nossas demandas sejam ditas por nossas próprias vozes e nossos direitos sejam construídos e defendidos por nós mesmo, Povos Indígenas”, afirma.

“Enquanto mulher indígena eu acredito que posso reescrever uma nova história para nossos povos, mostrando para a sociedade que não somos tutelados e podemos dizer sobre quem somos, além de provar para o meu povo que podemos acreditar na força e capacidade que temos”, afirma Vanda Witoto.

Com a candidatura, Vanda também espera ser como uma ponta de lança – profecia de sua avó – para somar com outras mulheres indígenas e lutar pelos direitos de seus povos.

Ela frisa que além das pautas indígenas, quer ocupar esse espaço para atuar em defesa da Amazônia e do meio ambiente, ações importantes para indígenas e não indígenas. “Nossa luta é para o bem comum da sociedade”, afirma. “Precisamos avançar juntos para construir políticas a partir dos nossos modos de vida, porque são eles que vão garantir a preservação da nossa floresta e a continuidade de todos os povos do nosso país”, pondera, “E lembrar do papel central e da necessidade de apoio à educação, saúde e à ciência para um desenvolvimento com sabedoria da Amazônia”.